Segundo informações divulgadas pelo Serasa Experian, o número de empresas endividadas atingiu o recorde no mês de dezembro de 2019, atingindo mais de 6 milhões de pessoas jurídicas com dívidas. Deste número, apenas 15% receberam concessão de crédito nos primeiros meses da pandemia, segundo levantamento elaborado pelo Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas.
O levantamento de pesquisa do SEBRAE estimou que 92% das empresas com dívidas em atraso tiveram perda de faturamento no ano de 2020. Inflação crescente, pressão do dólar, desvalorização do real e instabilidade política norteiam o resultado dessas pesquisas.
Iliquidez, endividamento saudável, e negativa de concessão de crédito por bancos são termos cada vez mais comuns entre os empresários e executivos brasileiros. Esse cenário impôs uma mudança de cultura na classe, que estão mais preparados para enfrentar adversidades em períodos instáveis, e, ao mesmo tempo, precisam buscar crédito por meios alternativos para evitar a falência do negócio.
Assim, negociações e operações imobiliárias entre pessoas físicas e jurídicas com dívidas se tornaram mais comuns. Mas isso impõe uma cautela extra para que a negociação não seja anulada por eventuais credores.
No intuito de se evitar que o negócio seja anulado por fraude contra credores e fraude à execução, é necessário identificar: (i) se há iliquidez das partes envolvidas, e se a operação imobiliária pode levar uma das partes à iliquidez; (ii) se o imóvel da operação é o único bem em nome da pessoa; (iii) se há averbações de hipoteca judicial, processo de execução, ou ações fundadas em direitos reais e com pretensão reipersecutória; e, ainda, (iv) o estado dos processos ajuizados contra as partes envolvidas.
A due diligence é essencial para identificar esses elementos. Ela consiste em um parecer jurídico sobre a situação patrimonial dos envolvidos, com a análise pormenorizada de processos judiciais existentes na Justiça Estadual, Justiça Federal, Justiça do Trabalho, Execuções Fiscais, e eventuais protestos e dívidas que ainda não foram ajuizadas pelos órgãos públicos, por exemplo, Município, Estado, União, INSS etc.
Essas constatações não se aplicam apenas às operações de alienação, mas para toda e qualquer transferência de bens imóveis, tais como, doação, dação em pagamento, e usufruto, que também poderão ser anuladas se houver constatação de fraude contra credores ou fraude à execução.
O advento no Novo Código de Processo Civil elencou expressamente no art. 792 as situações em que são passíveis de configurar fraude a execução:
Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução: I - quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver; II - quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828 ; III - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude; IV - quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência; V - nos demais casos expressos em lei.
O inciso IV exige que o adquirente do imóvel verifique todas as ações judiciais em nome do alienante, já integrante no polo passivo da demanda. Essa constatação é identificada com Certidões dos Cartórios Distribuidores dos Tribunais de Justiça Estaduais, que é um dos documentos exigidos pelos Cartórios de Registros de Imóveis para se efetuar Escrituras Públicas de Compra e Venda, Doação, Usufruto, etc.
Os tribunais elegem as Certidões dos Cartórios Distribuidores como o elemento essencial para se caracterizar a ciência da existência de ações judiciais na forma do art. 792, CPC. Ou seja, havendo certidão positiva, não é possível alegar o desconhecimento da ação, dificultando a defesa do comprador em futura alegação de fraude à execução.
As certidões negativas dão sensação de segurança, porém, se revela uma falsa premissa. Isso porque o §3º do art. 792 impôs uma cautela extra para os pretensos compradores, vejamos:
§ 3º Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.
As pessoas jurídicas podem ter a sua personalidade desconsiderada por um incidente processual de desconsideração da personalidade jurídica, permitindo aos credores das pessoas jurídicas atingir o patrimônio dos sócios na proporção da quota-parte de sua participação no capital social.
A sutileza do parágrafo terceiro do art. 792, CPC, é em relação ao efeito retroativo da citação da pessoa jurídica que sofreu desconsideração da personalidade jurídica, para fins de constatação de fraude.
Isto quer dizer que a citação da pessoa jurídica da qual o alienante é sócio, é o marco temporal para configuração da ciência do pretenso comprador do imóvel em relação à existência de ações judiciais movidas em face do alienante do imóvel.
Exemplificando: imaginamos a situação de uma pessoa jurídica que responde a demanda judicial e foi citada em 1998. O sócio da pessoa jurídica, Sr. João, alienou o imóvel em 2010, sendo que nessa época não integrava o polo passivo de nenhuma ação judicial. Em 2015 o Sr. João passou a responder demanda judicial por meio da desconsideração da personalidade jurídica.
Isso significa que o credor poderá pleitear a anulação do negócio jurídico, com fundamento no §3º, CPC, sendo insuficiente a alegação de boa-fé do terceiro adquirente. Vejamos um julgamento do Tribunal de São Paulo sobre o tema:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – CUMPRIMENTO DE SENTENÇA – FRAUDE À EXECUÇÃO – Configurada – Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar (art. 792, § 3º, CPC)– Quando da doação, a empresa cuja personalidade jurídica foi desconsiderada já havida sido citada, já havendo, inclusive, sentença condenatória transitada em julgado em seu desfavor – Transferência do patrimônio de forma gratuita a seus filhos que dispensa prova da má-fé dos donatários – O reconhecimento da fraude à execução afasta a impenhorabilidade do bem de família – Comportamento contrário à boa-fé objetiva que não pode ser premiado – Precedentes do STJ e desta Corte – Negado provimento. (TJ-SP – AI: 22597915220188260000 SP 2259791-52.2018.8.26.0000, Relator: Hugo Crepaldi, Data de Julgamento: 12/04/2019, 25ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 12/04/2019)
No caso do julgado acima, sequer foi possível alegar a impenhorabilidade de bem de família. Há estudiosos que defendem a inconstitucionalidade do §3º, do art. 792, CPC, por afronta ao princípio da segurança jurídica, porém, não há decisão nesse sentido até o momento.
O parágrafo terceiro segue a lógica sistemática do Novo Código de Processo Civil, que impõe aos pretensos compradores a devida cautela em operações de transferência de bens imóveis, no intuito de se resguardar o crédito dos credores do alienante.
A tomada de todas as medidas e cautelas é ônus exclusivo do pretenso comprador do imóvel. Se observadas, o judiciário premia a atitude com o reconhecimento da sua boa-fé objetiva e a inexistência de intenção de fraude, fazendo jus à tutela na figura da boa-fé do terceiro adquirente.
Assim, é indispensável que toda e qualquer operação de transferência de imóveis seja acompanhada de uma assessoria jurídica preventiva e diligente, com planejamento estratégico para identificar possíveis riscos e nortear a tomada de decisões, para que os envolvidos possuam segurança em suas negociações e evitem prejuízos desnecessários.